Olá.
Aqui é o Rafael novamente.
Neste dia 31 de outubro, alguns setores da cultura brasileira comemoram o Dia do Saci, celebração criada como forma de promoção da cultura brasileira e tentativa de resistência à importação do Halloween norte-americano em terras brasileiras.
Como uma contribuição para o Dia do Saci, que pode ser utilizado em escolas como promoção do folclore brasileiro, transcrevo aqui um texto que pode ser usado como material didático para aulas de português e leitura: a versão da lenda do Negrinho do Pastoreio, tradicional história folclórica do Rio Grande do Sul, escrita por um autor local. Acompanha, abaixo, um vocabulário, e duas ilustrações feitas por mim com o tema.
O
NEGRINHO DO PASTOREIO
Versão: Fidélis Dalcin Barbosa
Baseada na versão original de Simões Lopes Neto
O minuano – vento gelado que sopra
dos Andes – varria inclemente os pampas sem fim do Rio Grande do Sul. Medonho,
aquele inverno! Feias chuvaradas encharcando os campos. Nevadas e geadas
cobrindo as coxilhas de branco qual imenso lençol...
Domingo de sol. Domingo bonito mas
frio demais para uma carreira. Um estancieiro, muito rico e muito mau, ia
correr com um vizinho. O cavalo baio do primeiro tinha fama tanto como o cavalo
mouro do adversário.
A parada era de mil onças de ouro.
Deveriam ser distribuídas entre os pobres. Mas o estancieiro mau não concordou.
Se ele ganhasse, o dinheiro seria todo dele, somente dele. Nunca ninguém viu um
fazendeiro tão pão-duro como aquele.
Por causa de sua maldade e da sua
avareza, ninguém gostava dele. Vivia quase sozinho, o miserável. Na sua casa,
moravam com ele apenas um filho, impertinente como o pai, e um negrinho. Um
negrinho muito bom, bonito lustroso. Não tinha nome, não tinha pai, não tinha
mãe e nem padrinho, o coitado. Por isso, Nossa senhora era a sua madrinha.
O Negrinho cuidava dos cavalos do
estancieiro cauíla e era ele que faria de jóquei da carreira. Se porventura o
baio perdesse, ninguém pode imaginar o que o malvado do estancieiro faria
daquele pobre escravo. E não é que o estancieiro mau perdeu mesmo?
- Valha-me a Virgem madrinha Nossa
Senhora! – gemeu o Negrinho.
É verdade, os pobres se alegraram
porque o ganhador distribuiu logo todo o valor das mil onças. Mas o Negrinho,
nem queiram saber.
O estancieiro voltou para casa com a
alma em pedaços. Apeou do cavalo. Mandou amarrar o Negrinho a um palanque e
deu-lhe uma tremenda surra de relho.
De madrugada saiu com o Negrinho
pelo campo. Parou no alto de uma coxilha e falou:
- Trinta quadras tinha a cancha da
carreira que tu perdeste. Trinta dias ficarás aqui pastoreando a minha tropilha
de trinta tordilhos... O baio fica de piquete na soga e tu ficarás de estaca!
Chorando, lá ficou o coitadinho dia
e noite, passando fome, passando frio. Enfim, enfraquecido e cansado, caiu com
a soga do baio enleada no pulso. Deitou-se encostando a cabeça a um cupim.
De noite, vieram as corujas. Voaram
em roda, paradas no ar, sem mover as asas, os olhos reluzentes, amarelos,
olhando para o Negrinho.
Ele teve medo. Rezou à sua madrinha,
Nossa Senhora, e adormeceu.
Ia alta a noite, quando chegou o
guaraxaim. Farejou o Negrinho. Depois roeu a guasca da soga, soltando o baio,
que fugiu a galope, e toda a tropilha com ele, escaramuçando no escuro e
desguaritando-se nas canhadas.
Com o tropel, o negrinho acordou. O
guaraxaim fugiu, esganiçando. Os galos cantavam, longe.
De manhã, a cerração encobria os
campos e o Negrinho não enxergava o pastoreio. Chorou, pensando no castigo que
iria levar.
O filho do estancieiro, aquele
menino mau, foi lá e voltou logo a contar ao pai que os cavalos não estavam...
Então, o Negrinho foi outra vez
amarrado pelos pulsos ao palanque, tomando tremenda surra de relho.
Quando anoiteceu, o estancieiro
ordenou que o Negrinho fosse campear a tropilha.
Rengueando e gemendo, o Negrinho
saiu. Rezou à sua madrinha, Nossa Senhora. Foi ao oratório da casa. Tomou o
toco de vela aceso em frente da imagem e andou pelo campo.
Foi andando, andando, pelas coxilhas
e canhadas, pela beira dos lagões, paradeiros e restingas. E em toda a parte a
vela ia pingando cera no chão. E de cada pingo nascia uma luz. Nasceu tanta
luz, tanta luz, que clareava tudo.
O gado ficou deitado. Os touros não
escarvaram e as manadas xucras não dispararam. E os cavalos, vendo o Negrinho,
relincharam todos juntos, contentes.
O Negrinho montou no baio e tocou a
tropilha por diante, até o alto da coxilha. Deitou-se e no mesmo instante se
apagaram todas as luzes. Dormiu, sonhando com a Virgem, sua madrinha.
E não apareceram as corujas, nem o
guaraxaim. De manhã, o menino mau, o filho do estancieiro, foi e enxotou os
cavalos, que dispararam campo afora, desguaritando-se nas canhadas.
O tropel acordou o Negrinho. E o
menino mau foi dizer ao pai que os cavalos não estavam lá...
* *
*
Aí o estancieiro mandou amarrar o
Negrinho pelos pulsos ao palanque e deu-lhe tremenda surra de relho. Deu-lhe
tanto, recortando as carnes, o sangue vivo escorrendo do corpo...
O Negrinho invocou sua madrinha,
Nossa Senhora. Soltou um suspiro fundo e triste, parecendo morrer...
O estancieiro mandou atirar o corpo
do Negrinho numa panela de formigueiro. Depois assanhou bem as formigas.
Quando as formigas principiaram a
trincar-lhe o corpo, o estancieiro foi embora sem olhar para trás.
Naquela noite, o estancieiro sonhou
que ele era ele mesmo mil vezes, que tinha mil filhos, mil negrinhos, mil
cavalos baios e mil onças de ouro... e que tudo isto cabia folgado dentro de um
formigueiro pequeno...
Depois houve três dias de cerração
forte, e três noites o estancieiro teve o mesmo sonho.
* *
*
A peonada correu o campo todo, mas
ninguém viu a tropilha e nem o rastro.
O estancieiro foi ao formigueiro.
Viu lá o Negrinho de pé, com a pele lisa, perfeita, são e salvo, a sacudir as
formigas do corpo. Ao lado, o cavalo baio e junto a tropilha dos trinta
tordilhos, e, em frente, fazendo guarda ao pobrezinho, viu a Virgem Nossa
Senhora, sua madrinha. Quando viu aquilo, o senhor caiu de joelhos diante do
escravo.
E o Negrinho, sarado e risonho,
montou o baio em pelo e sem rédeas, chupou o beio e tocou a tropilha a
galope...
Na mesma noite, os posteiros e
andantes, que dormiam em ranchos e camas de macega, ao relento, os tropeiros e
carreteiros, viram, como levada em pastoreio, uma tropilha de tordilhos,
tocados pelo Negrinho, gineteando em pelo, em um cavalo baio...
Hoje, nos campos do Rio Grande do Sul,
quem perder uma coisa, o que for, acende uma vela à madrinha do Negrinho, Nossa
Senhora, e então o Negrinho do Pastoreio campeia e acha...
(Extraído de: BARBOSA, Fidélis Dalcin. O Filho do Baby Doll. Canoas:
Tipografia e Editora La Salle, 1992. P. 60 – 63)
VOCABULÁRIO:
Inclemente:
severo, rigoroso;
Coxilhas:
morros dos pampas gaúchos, sem vegetação arbórea constante, onde prevalece a
rama, o capim, a vegetação rasteira;
Carreira:
pequena corrida de cavalos;
Baio:
cavalo de pelo castanho-amarelado;
Mouro:
cavalo preto salpicado de branco;
Onças:
antiga moeda de ouro circulante no Rio Grande do Sul do século XIX;
Impertinente:
Rabugento, importuno;
Cauíla:
avarento;
Apeou:
desmontou do cavalo;
Relho:
chicote de couro cru;
Quadra:
área de cerca de 132 m2;
Cancha:
raia, pista de corrida;
Tordilho:
cavalo de pelo negro com grandes manchas brancas;
Piquete:
guarda, vigia;
Soga:
corda que prende os animais a um poste;
Enleada:
enrolada;
Cupim:
pedaço de couro (provavelmente, retirado da corcova do boi zebu, cuja carne
recebe o mesmo nome);
Guaraxaim:
animal mamífero e carnívoro da família dos canídeos;
Guasca: tira
de couro;
Escaramuçando:
rodopiando;
Desguaritando-se:
extraviando-se;
Canhadas:
vales entre colinas e coxilhas;
Esganiçando:
gritar com voz aguda, semelhante à de um cão;
Cerração:
nevoeiro;
Campear:
procurar pelos campos;
Rengueando:
arrastando as pernas;
Paradeiro:
local em que se para;
Restinga:
monte de areia ou pedras perto de locais com água;
Escarvar:
cavar o solo superficialmente, com a pata;
Xucras: que
não foram domadas;
Enxotou:
espantou;
Panela de formigueiro: buraco
de formigueiro construído no chão;
Trincar: morder,
cortar a mordidas;
Peonada:
grupo de peões de estância;
Posteiro: empregado
rural responsável pela vigia junto à cerca da fazenda;
Macega:
capim seco; tipo de erva daninha;
Relento: ao
ar livre, sem proteção.
Em breve, novas contribuições para os professores que acessam este blog.
Visitem:
https://estudiorafelipe.blogspot.com.br/.
Até mais!